Pura firula.
Quando recebi aquele e-mail semana passada, propondo um ataque mortal ao cinema e também à livre expressão, lembrei-me do filme Dogville de Lars Von Trier que retrata a hipocrisia da sociedade moderna e ocidental. Ironicamente, Von Trier é um dos signatários do Dogma 95, um movimento fundado em Copenhage, na Dinamarca, por cineastas supostamente descontentes com os rumos que o cinema seguiu. Ou seja, O Dogma 95 também se revoltou contra o cinema, mas ao invés de querer destruí-lo ou boicota-lo, tinha como propósito, reinventa-lo.
Muitos movimentos, principalmente a partir dos anos 50 e 60, surgiram como o propósito de renovar a Sétima Arte. Um dos principais, se não o principal destes movimentos, foi a Nouvelle Vague francesa. Este movimento decretava a autonomia do cineasta, dando início a um estilo de cinema que se pode chamar de autoral, onde o diretor passaria no filme sua visão de mundo e suas impressões pessoais. Entretanto, o pessoal do Dogma 95, na época de seu lançamento em 1995, acusava o pessoal da Nouvelle Vague, de não ter conseguido seu intento de renovar o cinema.
No Brasil, tanto a Nouvelle Vague quanto o neo-realismo italiano influenciaram o Cinema Novo, onde o representante mais aclamado foi Glauber Rocha. O Cinema Novo, além do filme autoral, instituía o que ficou conhecido como a estética da fome, mostrando a face miserável de nosso país e criando uma personalidade para o cinema nacional.
Mas, não só a temática era de fome. Com a falência dos grandes estúdios brasileiros que produziam as famosas chanchadas, novos diretores com poucos recursos faziam da linguagem neo-realista, sua forma de expressão. Nesta época, Glauber cunharia a famosa frase: “Uma câmera na mão e uma idéia na cabeça”.
A proposta do Cinema Novo era, com poucos recursos financeiros e cênicos, os diretores utilizarem o cinema como obra de manifesto, principalmente, contra a ditadura militar e a censura. Assim como o neo-realismo italiano, o Cinema Novo retratava temas e cenas populares, além de utilizar pessoas do povo sem formação artística no elenco. E não se restringia a isso. A “câmera na mão” criava a estética do filme, transformando em linguagem a singeleza das produções.
O Dogma 95 surgiu com a proposta de criar uma nova estética para o cinema, produzindo um cinema mais “puro”, segundo a definição de seus idealizadores. Em oposição ao cinema individualista da Nouvelle Vague e ao cinema industrial de Hollywood, o Dogma 95 apresentaria uma série de normas que foram intituladas “Voto de castidade”.
Opondo-se ao cinema da ilusão, o Dogma se propunha a criar um cinema de sensações verdadeiras, onde toda a pirotecnia deveria ser totalmente abolida. Com a idéia de banir toda e qualquer artificialidade e simplificar o processo de construção de um filme, o Dogma impunha ao cineasta signatário seguir fielmente os mandamentos do “voto de castidade”, abdicando de todos os recursos artificiais, principalmente técnicos.
Entretanto, mesmo se opondo principalmente à Nouvelle Vague, os filmes realizados segundo os preceitos do Dogma 95 lembram muito os filmes desta escola. Tirando-se as temáticas “cabeças” e o hermetismo (caráter incompreensível) da Nouvelle Vague, o Dogma lembra sua estética amadorista e de poucos recursos. Lembra, alias o Cinema Novo, o neo-realismo italiano e todo e qualquer cinema “underground” de qualquer país do mundo, que produza com extremas limitações de recursos.
De acordo com as regras do Dogma 95, os diretores devem utilizar somente locações externas, abolir o uso de cenários, trilha sonora e iluminação artificial, bem como de seqüências superficiais, ou seja, aquelas que não tenham nenhum propósito específico para o filme. Os filmes devem retratar um momento específico e apenas com o som ambiente. O uso de tripé para segurar a câmera é proibido, assim como todo e qualquer efeito especial. Nem ketchup imitando sangue é permitido. Ah. E o diretor não deve levar crédito.
Tudo balela. Bastou o senhor Lars Von Trier ganhar a Palma de Ouro por seu Dançando no Escuro para chegar-mos a conclusão que quem menos seguia o Voto de Castidade, era seu próprio idealizador. Alguns filmes ele até realizou seguindo os mandamentos do Dogma 95, mas de forma alguma Von Trier se limitou a seguir suas próprias regras.
Dogville, por exemplo, contraria muita das normas, apesar de economizar nos cenários e elementos de cena. Utilizando linguagem teatral identificados com a Comédia del’arte e o teatro de Bertold Brecht, Dogville usa sim e muito, diversos recursos cênicos. Mas, como não sou fiel a dogmas e acho que todo e qualquer dogma é execrável, gostei muito do experimentalismo do filme, todo gravado em estúdio.
A conclusão que chego é que muitas idéias que certas pessoas defendem com veemência é pura encenação, firula para chamar a atenção dos holofotes. Alguns conseguem isso de forma genial, outros são medíocres.
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